A ocup/ação dOs Panthanas e da Trupe Olho da Rua

De frente para a Praça dos Andradas, um importante ponto histórico da Baixada Santista, ladeando a rodoviária, um prédio chama a atenção pelos desenhos que tatuam seus muros. Em meio a tantos grafites, o da entrada sugere um diálogo entre fulanos cujas línguas estão em riste. No cantinho da mesma parede, uma terceira personagem (se) questiona: “Teatro?”. Sim, teatro. É isso e muito mais o que acontece dentro e além dos muros da Vila do Teatro: uma ocupação feita por um coletivo de artistas que promovem a arte de rua em Santos. Entre eles, Os Panthanas e a Trupe Olho da Rua, cujas atividades não se restringem à performance. Suas atuações política, crítica e de resistência são cada vez mais necessárias em um contexto de incertezas nas gestões públicas (municipais, estaduais e federais), no qual práticas artísticas de rua têm sofrido represálias frequentemente.

Raquel Rollo, atriz, musicista e palhaça na Trupe Olho da Rua, conta que, no início, quando o grupo saiu das salas de teatro e passou a atuar nas ruas, além da população, os próprios artistas locais estranharam a decisão. Até mesmo ao concorrer em editais das secretarias de cultura, ela diz que a trupe sentia que estava sempre posta à margem. Por outro lado, seus integrantes viram também que o movimento do teatro de rua se tornava mais forte ao conhecer a Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) e aderir a ela, inspirando-se tanto nas discussões quanto nas práticas dos coletivos afiliados. “A gente percebeu que, na RBTR, havia grupos ocupando imóveis que estavam abandonados, dando serventia para esses espaços. E começamos a procurar um em Santos também”, explica.

Descobriram, então, esse prédio (sem uso até aquele momento) e lá se instalaram para abrigar seu material cênico e as diversas atividades que atualmente ambos os grupos desenvolvem com seus parceiros. “A gente acaba funcionando como uma zona autônoma temporária. Somos um não-lugar por não termos nenhum papel assinado pela prefeitura. Não tem nenhum termo de concessão de uso do espaço. Estamos no formato de ocupação e resistência há cinco anos”, conta Júnior Brasselotti, ator e palhaço no grupo Os Panthanas. “E funcionamos nesse esquema: quem quer fazer alguma coisa aqui acaba colando, trocando ideia, se identificando ou não com a gente, e trazendo propostas”, completa.

A ocupação incomoda?
“Incomoda as pessoas que entram e saem da gestão municipal. Incomoda as que não entendem o que é uma ocupação, que acham que a gente é ‘invasor’. Logo taxam assim para que nossa ocupação não sirva de exemplo”, diz Raquel. É pela via da resistência que a Vila do Teatro ganha força, assim como pelo trabalho dos muitos coletivos que estão abrigados por ela ou que dela se aproximam para se apoiarem mutuamente. Por isso, ao perceber que precisava ouvir outras vozes, o pessoal da Vila do Teatro também abriu as portas do espaço para vários movimentos sociais, como o LGBTT, o de Hip Hop, rap, do audiovisual, das feministas… Também são realizadas, constantemente, reuniões amplificadas com a classe artística para poderem afinar discursos e determinar como colocar em prática os planos discutidos. “Tudo isso sempre foi na base da camaradagem, de as pessoas saberem o quanto é complicado a gente fazer cultura neste país. E de se abraçar e falar ‘é dessa troca que a gente precisa mesmo’”, salienta Raquel.

Falando em camaradagem, tudo o que há na ocupação é fruto de doação. E não se cobra nada para realizar qualquer atividade lá dentro. Júnior explica o funcionamento: “Você traz a atividade, vê o dia que quer, a gente vem e abre… e você faz o que quiser. Dizemos ‘cuide do banheiro’, ‘aqui é a cozinha’,‘fique à vontade’”. É num clima democrático que tudo é resolvido lá dentro. E mesmo quando a demanda é realizar melhorias estruturais no prédio, que está precisando de um telhado novo no momento, há um chamamento pela ação coletiva, via saraus, por exemplo. Os Saraus da Vila do Teatro existem desde o início da ocupação. E o que ocorreu em junho, quando da visita de O Quintal de Fulana e Melão à cidade, pretendia arrecadar fundos para esses consertos. O tema do evento foi “Diretas já! E depois?”, e tinha uma programação que contou com a apresentação do espetáculo “Arrumadinho”, da Trupe Olho da Rua, seguida do debate sobre a questão política nacional, e, daí, bandas de músicas autorais, DJs, grupos de Hip Hop e a execução de números dos alunos das oficinas de circo e palhaçaria, ministradas pelos artistas da própria Vila do Teatro.

 

Arte de rua, resistência e parcerias
Decretos de leis generalizantes, que não levam em consideração as especificidades da arte de rua, dificultam e muito a prática dos artistas em Santos – tanto aqueles que são locais quanto os que estão de passagem. Segundo Júnior, é fundamentadas nesses decretos, muitas vezes, que as polícias (militar e da guarda municipal) encontram respaldo para sua atuação: em dados episódios, sendo repressiva e truculenta, impedindo as apresentações, apreendendo os objetos cênicos etc., como no caso em que a Trupe Olho da Rua teve a peça “Blitz – O império que nunca morre” interrompida pela PM, em outubro de 2016. Ironicamente, a trupe vem passando pelo enfrentamento do problema que ela própria critica na obra: a violência do Estado. “A gente está num momento muito complicado porque existe uma censura velada. Quando a gente vai para cidades mais afastadas da capital, vê um abuso de autoridade ainda muito forte”, conta Raquel.

Fazer arte de rua é uma possibilidade de levar o teatro e o circo aonde eles chegam a ser (quase) inexistentes. E por saber do resultado transformador que a arte pode ter, a Trupe Olho da Rua afirma que não vai parar de apresentar sua Blitz. “Porque a gente acredita que a arte está aí para fazer refletir, para fazer com que a gente, de alguma maneira, coloque [em cena] uma angústia que não é somente nossa, mas é do povo, e que poucas pessoas conseguem falar”, justifica a atriz. Já o trabalho mais recente dOs Panthanas, que se chama “Uma Palhaçada Federal”, e é feito em anos de eleições, não foge da missão de fazer o público pensar. Com o espetáculo, o grupo pôde circular por dez locais periféricos em Santos, dentre os quais, alguns nunca haviam recebido atividade artística antes.

Mesmo que cada grupo trabalhe um repertório distinto, há oportunidades para surgirem criações conjuntas na Vila do Teatro. Artistas dOs Panthanas, da Trupe Olho da Rua e de outros grupos formaram O Coletivo, no qual o teatro épico é motriz e para o qual o circo tem sido fundamental na preparação da linguagem corporal das obras. O Coletivo já está no segundo espetáculo criado, o “Zona”, que acontece na região do porto da cidade, onde atores e espectadores circulam por regiões de meretrício. Júnior destaca a relação harmoniosa entre os dois grupos: “É um troca-troca artístico saudável, maravilhoso. A gente não conseguiria viver sem porque são pessoas que a gente respeita enquanto artistas. São atores e palhaços fantásticos, agentes públicos muito bacanas também. E a gente se afina. Tem esse fluxo natural. É difícil você dividir, dizer onde começa um e acaba o outro, embora tenhamos carreiras paralelas”.

A Trupe Olho da Rua trabalha com o humor, mas não necessariamente só com o palhaço. No repertório, além da Blitz, estão as peças “Bufonarias I e II”, “Auto dos Palhaços”, “Brincadeiras de Arruar”, “Pra lá de Bagdá”, “Terra Papagali”, “De Olho no Porto” e a já citada Arrumadinho. A esta última, pudemos assistir e fizemos alguns registros dela para compor o vídeo que você vê um pouco acima, que trata especialmente da ocupação política da Vila do Teatro, das atividades desenvolvidas, da relação entre os grupos e da palhaçaria que rolou no sarau.

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